Rainer Maria RILKE

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Rilke
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(1875-1926)

Uma Biografia de Rilke

 

            “Não há nada menos apropriado para tocar numa obra de arte do que a linguagem crítica, no qual tudo se reduz sempre a alguns equívocos mais ou menos felizes. As coisas estão longe de ser tão compreensíveis ou exprimíveis como geralmente nos querem fazer crer; a maior parte dos acontecimentos é inexprimível e ocorre num espaço em que palavra alguma pisou. Mais inexprimíveis do que qualquer outra coisa são as obras de arte, — seres repletos de mistério, cuja vida perdura junto à nossa vida mortal e efémera”.

(Rilke, “Cartas a Um Jovem Poeta”, primeira carta, de 7 de Fevereiro de 1903)

 

 

“O senhor envia os seus versos às revistas literárias, compara-os com outros versos, e sente-se inquieto quando algumas redacções recusam os seus ensaios poéticos. Pois bem, já que me permite aconselhá-lo, devo exortá-lo a renunciar a tudo isso. O senhor está olhando para fora, e é justamente isso o que não deveria fazer neste momento. Ninguém o pode aconselhar ou ajudar. Ninguém... Não há senão um caminho: procure entrar em si mesmo. Esquadrinhe o seu íntimo até descobrir o motivo que o impele a escrever. Procure saber se esse motivo mergulha as suas raízes até ao mais fundo da sua alma. E, procedendo à sua própria confissão, interrogue-se se morreria se lhe fosse vedado escrever? Diante de tudo isto, pergunte a si mesmo na hora mais calada da sua noite: "Devo eu escrever?” Escave e aprofunde dentro de si uma resposta. Se for afirmativa, se puder responder àquela pergunta tão séria com um firme e simples: "Sim, devo!"; então, erga o edifício da sua vida de acordo com esta necessidade. A sua vida, até na sua hora mais indiferente e anódina, deverá tornar-se o sinal e o testemunho desse impulso. Aproxime-se então da natureza, e tente dizer, quase como se fosse o primeiro homem, o que vê e sente, ama e perde. Não escreva, evite escrever, versos de amor. Nos seus primeiros passos, subtraia-se a formas e temas demasiado correntes, porque são os mais difíceis; já que é necessária uma grande dose de força e maturidade para poder contribuir com algo de si num domínio onde já existem uma infinidade de bons legados, alguns deles brilhantes. Por isso, livre-se dos motivos de índole geral. Recorra aos que em cada dia lhe oferece a sua vida. Descreva as suas tristezas e anseios, os seus pensamentos fugazes e a sua crença em algo de belo; e exponha-o por completo com uma sinceridade íntima e humilde. Utilize, para o exprimir, as coisas que o rodeiam. E as imagens que povoam os seus sonhos. E tudo quanto vive na sua memória. E se o seu quotidiano lhe parecer pobre e sem interesse, culpe-se a si mesmo, por não ser suficientemente poeta para conseguir descobrir e desvelar as suas riquezas. Porque, para um espírito criador, não há pobreza, nem tampouco lugar algum que lhe pareça pobre ou indiferente. E mesmo que você se encontrasse num cárcere, cujas paredes abafassem todo e qualquer eco do mundo exterior, ainda assim você teria consigo a sua infância, essa infância que encerra uma riqueza preciosa e digna de reis, um camarim onde estão refundidos os tesouros da memória. Volte a sua atenção para ela e procure fazer ressurgir as imensas sensações desse vasto passado. Assim, verá como a sua personalidade se afirma, como se expande a sua solidão, convertendo-se numa remansosa morada de penumbra enquanto ecoam num sussurro longínquo as vozes e os ruídos das outras pessoas. E, se deste mergulhar em si mesmo, deste submergir-se no seu próprio mundo, nascerem prontamente alguns versos, então, não sentirá qualquer necessidade de perguntar a alguém se eles são bons”.

(Rilke, “Cartas a Um Jovem Poeta”, primeira carta, de 7 de Fevereiro de 1903)

 

 

“Uma obra de arte é boa se nasceu sob o impulso de uma necessidade íntima”.

(Rilke, “Cartas a Um Jovem Poeta”, primeira carta, de 7 de Fevereiro de 1903)

 

 

            “Na realidade, sobretudo nas coisas mais importantes e profundas, encontramo-nos no meio de uma solidão inominada. Para poder aconselhar e, mais ainda, para poder ajudar alguém, é mister que ocorram e se conquistem muitas coisas. E, para que se chegue a acertar uma única vez, deve dar-se toda uma constelação de circunstâncias propícias”.

(Rilke, “Cartas a Um Jovem Poeta”, segunda carta, de 15 de Abril de 1903)

 

 

            “Desejo que a partir de agora e aqui mesmo fique formulada esta súplica: leia o menos possível os trabalhos de carácter estético-crítico: ou são ditames que, pela sua rigidez e falta de vida, acabaram por perder todo o sentido e petrificaram-se; ou, tão-somente, hábeis jogos de palavras em que prevalece hoje uma opinião e amanhã a opinião contrária. As obras de arte vivem imersas numa solidão infinita, e a nada são mais inacessíveis do que à crítica. Apenas o amor logra compreender e fazê-las suas, só o amor pode ser justo para com elas. Diante de todas as discussões, glosas e introduções, deixe sempre a sua razão entregue a si mesmo e ao seu próprio sentir. Se daí resultar que não está no caminho certo, o natural desenrolar da sua vida se encarregará de levá-lo paulatinamente e com tempo até outros critérios. Deixe que os seus conceitos tenham calmamente e sem qualquer estorvo, o seu próprio desenvolvimento. Como todo o progresso, este há-de surgir de dentro, do mais fundo de si, sem ser apressado nem acelerado por nada. Tudo consiste em levar algo no seu interior até à conclusão, e de seguida trazê-lo à luz; deixar que qualquer impressão, qualquer sentimento em gérmen, amadureça por inteiro no seu íntimo, na obscuridade, no indizível, inconsciente e inacessível ao próprio entendimento: até ficar perfeitamente acabado, esperando com paciência e profunda humildade a hora de ser iluminado por uma nova claridade. Este e não outro é o viver de um artista: o mesmo no entender como no criar.

            Aí, não se pode reger pelo tempo. Um ano não tem valor, e dez anos nada são. Ser artista é: não calcular nem contar, mas sim amadurecer como a árvore que não apressa a sua seiva, mas permanece tranquila e confiada sob as tormentas da primavera, sem temer que depois dela nunca chegue outro Verão. Apesar de tudo, o Verão chega. Mas, apenas para os que sabem ter paciência e viver de ânimo tranquilo, sereno e vasto, como se diante dele se estendesse a eternidade. Isto, eu vou aprendendo em cada dia da minha vida. Aprendo-o entre sofrimentos, aos quais, por tal, fico agradecido. A paciência é tudo!”.

 (Rilke, “Cartas a Um Jovem Poeta”, terceira carta, de 23 de Abril de 1903)

 

 

            “Se você se atém à natureza, ao que há de singelo nela; ao pequeno que apenas se vê e que tão improvisadamente pode chegar a ser grande, imenso; se sente esse carinho pelas coisas ínfimas e, com toda a simplicidade, como quem presta um serviço, trata de ganhar a confiança do que lhe parece pobre, então tudo se tornará mais fácil, mais harmonioso, mais em conformidade consigo. Talvez não no âmbito da razão que, assustada, se deixa ficar mais atrás, mas sim no fundo do seu conhecimento, no constante velar da sua alma, no seu saber mais íntimo”.

(Rilke, “Cartas a Um Jovem Poeta”, quarta carta, de 16 de Julho de 1903)

 

 

            “A satisfação própria do sexo é uma emoção sensual como o simples mirar. Ou, como a mera sensação que cumula a língua enquanto se saboreia uma fruta deliciosa. É uma experiência maior, infinita, que nos é oferecida; um conhecer do mundo, a plenitude e o esplendor de todo o saber…E o que é errado não é viver esta experiência, mas sim que quase todos abusem dela e a dissipem. Empregando-a como incentivo e dissipação nos momentos de maior lassidão em vez de a viver em recolhimento para alcançar sublimes êxtases. Também do comer, decerto, fizeram os homens outra coisa. Por um lado a miséria e, por outra a opulência excessiva, deslustraram esta necessidade. De modo semelhante se turvaram também outras necessidades profundas e singelas, em função das quais a vida se renova. Mas cada indivíduo, para si mesmo, pode resgatar a sua pureza, vivendo-as com límpida singeleza. Se isto não esta ao alcance de qualquer indivíduo – porque cada um depende demasiado dos outros – está ao alcance do homem solitário. Este pode recordar-se que tanto nas plantas como nos animais, toda a beleza é uma calada e persistente forma de amor e anseio. Pode também ver como os animais e as plantas se unem, multiplicam-se e crescem sem conhecer nenhum prazer ou sofrimento físico, mas sim curvando-se ante necessidades maiores do que o gozo e a dor, mais poderosas que toda a vontade e toda a resistência. Oh! Se o homem pudesse acolher com o espírito humilde e levar com maior seriedade este mistério do qual está prenhe a terra mesmo nas suas coisas mais pequenas. E o suportara, sentindo quão terrível e esmagador é o seu peso, em vez de o encarar de forma ligeira! E se inclinara com profunda veneração ante a sua própria fecundidade, que é apenas uma, quer pareça material ou espiritual. Pois também o criar do espírito ascende do mundo físico. É da sua mesma essência e como uma reprodução mais subtil, mais extasiante e mais perene do gozo carnal”.

(Rilke, “Cartas a Um Jovem Poeta”, quarta carta, de 16 de Julho de 1903)

 

 

            “Só existe uma solidão. É grande e difícil de suportar. E quase todos nós conhecemos horas em que de bom grado a cederíamos a troco de qualquer convivência, por muito trivial e mesquinha que fosse; até pela simples ilusão de uma pequena coincidência com qualquer outro ser, mesmo com o primeiro que aparecesse, ainda que assim resultasse talvez menos digno. Mas acaso sejam estas, precisamente, as horas em que a solidão cresce – pois o seu desenvolvimento é doloroso como o crescimento das crianças e triste como o início da Primavera – ela, sem embargo, não deve desconcertá-lo, pois o único que, por certo, nos faz falta é isto: Solidão, grande e íntima solidão. Mergulhar em si mesmo e, durante horas e horas, não encontrar ninguém…Isto é o que importa conseguir. Estarmos sós, como estivemos sós quando éramos crianças, enquanto á nossa volta andavam os grandes de um lado para o outro, enredados em coisas que pareciam importantes e grandes, só porque eles se mostravam muito atarefados, e porque nós não entendíamos nada dos seus afazeres.

            “Ora bem, se um dia os adultos acabarem por descobrir quão pobres são as suas ocupações, e como as suas profissões são vazias e falhas de qualquer nexo com a vida, porque não seguir, então, olhando todas essas coisas com os olhos da infância, como se fosse algo exterior e estranho? Porque não olhar tudo de longe, da profundidade do nosso próprio mundo, desde os extensos domínios da nossa própria solidão, que é também trabalho e dignidade e ofício?”.

(Rilke, “Cartas a Um Jovem Poeta”, sexta carta, de 23 de Dezembro de 1903)

 

 

            “Se não existir nada de comum entre você e as outras pessoas, procure viver próximo das coisas. Elas não o abandonarão. Ainda há noites, e ventos que silvam entre as árvores e por cima de muitas terras. Ainda, em coisas e em animais, está tudo repleto de acontecimentos que você pode compartilhar. E também as crianças continuam a ser como você próprio foi em criança: tão tristes e tão felizes. Enquanto você pensa na sua infância, voltará a viver entre elas, as crianças solitárias. E então, as pessoas maiores já não significarão nada, nem terá qualquer valor a sua dignidade”.

(Rilke, “Cartas a Um Jovem Poeta”, sexta carta, de 23 de Dezembro de 1903)

 

 

            “ (…) Pouca coisa sabemos. Mas sempre sabemos que nos devemos ater ao que é difícil, e isso é uma certeza que nunca nos abandonará. É bom estar só, porque também a solidão resulta ser difícil. E algo que seja difícil deve ser para nós um motivo suplementar para o levar a cabo.

            “Também é bom amar, pois o amor é coisa difícil. O amor de um ser humano por outro: isto é, talvez, o mais difícil que já nos foi incumbido. É a prova suprema e derradeira, a tarefa final, ante a qual todas as outras não foram senão um ensaio. Por isso, não sabem nem podem amar ainda os jovens, que em tudo são principiantes. Hão-de aprendê-lo. Com todo o seu ser, com todas as forças reunidas em torno do coração solitário e angustiado que palpita alvoraçadamente – devem aprender a amar. Mas toda a aprendizagem é sempre um longo período de retiro e clausura. Assim, o amor é por muito tempo e até muito longe dentro da vida, solidão, isolamento crescido e aprofundado por aquele que se ama. Amar não é, em princípio, nada que possa significar absorver-se em outro ser, nem entregar nem unir-se a ele. Pois, o que seria uma união entre dois seres inacabados, falhos de luz e liberdade? Amar é antes uma oportunidade, um motivo sublime, que se oferece a cada indivíduo para amadurecer e chegar a ser algo em si mesmo; para tornar-se um mundo, todo um mundo, por amor a outro”.

 (Rilke, “Cartas a Um Jovem Poeta”, sétima carta, de 14 de Maio de 1904)

 

 

            “ (…) Por certo, as mulheres, em quem a vida se detém, permanece e mora de um modo mais imediato, mais fecundo, mais confiado, devem ter-se tornado seres mais maduros e mais humanos do que os homens. Este, além de leviano – por não o obrigar o peso de nenhum fruto das suas entranhas a descer sob a superfície da vida – é também vaidoso, presunçoso, confuso, e menospreza, na realidade, a quem crê amar…Esta mais profunda humanidade da mulher, consumada entre sofrimentos e humilhações, sairá à luz e virá a resplandecer quando as mudanças e transformações da sua condição externa se houver desprendido e libertado dos convencionalismos alheios ao meramente feminino. Os homens, aqueles que não pressintam esse advento, sentir-se-ão surpreendidos e vencidos. Chegará um dia, que indubitáveis sinais percursores anunciam já de um modo eloquente e brilhante, sobretudo nos países nórdicos, em que aparecerá a mulher cujo nome já não significará apenas algo oposto ao homem, mas sim algo próprio, independente. Nada que faça pensar num complemento ou limite, senão sómente em vida e em ser: o Humano feminino”.

(Rilke, “Cartas a Um Jovem Poeta”, sétima carta, de 14 de Maio de 1904)

 

 

            “ (…) Se fomos postos no meio da vida, foi por ser este o elemento ao qual estamos adequados e melhor correspondemos. Além disso, por obra de uma adaptação milenária, tornamo-nos tão semelhantes a esta vida que, quando permanecemos imóveis, e graças a um feliz mimetismo, mal nos podemos distinguir de tudo quanto nos rodeia. Não temos nenhuma razão para recear ou desconfiar do mundo onde vivemos. Se nos inspira terrores, esses são os nossos terrores. Se contém abismos, esses abismos pertencem-nos. E se existem perigos, devemos procurar amá-los. Contanto que procuremos orientar e ajustar a nossa vida à medida deste princípio que nos aconselha a nos atermos sempre ao mais difícil, tudo quanto agora nos pareça ser o mais estranho, acabará por se revelar o mais familiar, o mais fiel”.

(Rilke, “Cartas a Um Jovem Poeta”, oitava carta, de 12 de Agosto de 1904)

 

 

            “Há muitas pessoas, mas há ainda muitas mais caras, pois cada uma tem várias. Há pessoas que usam uma cara anos seguidos; gasta-se naturalmente, suja-se, quebra nas rugas, alarga como as luvas que se usaram em viagem. São as pessoas simples, poupadas; não mudam de cara, nem a mandam lavar. Serve muito bem, afirmam elas; e quem é que lhes pode provar o contrário? (…) Outras pessoas põem as suas caras com uma rapidez medonha, uma após outra, e gastam-nas. Parece-lhes a princípio que lhes chegam para sempre, mas, mal chegam a quarenta – eis a última. Isto tem naturalmente o seu trágico. Não estão habituadas a poupar caras; a última gastou-se ao cabo de oito dias, tem buracos, está em vários sítios delida e fina como papel, e, a pouco e pouco, vai aparecendo a pasta de baixo, a não-cara, e é com essa que andam”.

(Rilke, “Os Cadernos de Malte Laurids Brigge”, tradução de Paulo Quintela, edição de “O Oiro do Dia”, Porto, 1983)

 

 

            “Antigamente sabia-se (ou talvez se pressentisse) que se trazia a morte dentro de si, como o fruto o caroço. As crianças tinham dentro uma pequena e os adultos uma grande. As mulheres tinham-na no seio e os homens no peito. Tinha-se, a morte, e isto dava às pessoas uma dignidade particular e um calmo orgulho”.

(Rilke, “Os Cadernos de Malte Laurids Brigge”, tradução de Paulo Quintela, edição de “O Oiro do Dia”, Porto, 1983)

 

 

            “Ah, mas que significam os versos, quando os escrevemos cedo! Devia-se esperar e acumular sentido e doçura durante toda a vida e se possível durante uma longa vida, e então, só no fim, talvez se pudessem escrever dez versos que fossem bons. Porque os versos não são, como as gentes pensam, sentimentos (esses têm-se cedo bastante), – são experiências. Por amor de um verso têm que se ver muitas cidades, homens e coisas, têm que se conhecer os animais, tem que se sentir como as aves voam e que se saber o gesto com que as flores se abrem pela manhã. É preciso poder tornar a pensar em caminhos em regiões desconhecidas, em encontros inesperados e despedidas que se viram vir de longe, – em dias de infância ainda não esclarecidos, nos pais que tivemos que magoar quando nos traziam uma alegria e nós não a compreendemos (era uma alegria para outro -), em doenças de infância que começam de maneira tão estranha com tantas transformações profundas e graves, em dias passados em quartos calmos e recolhidos e em manhãs à beira-mar, no próprio mar, em mares, em noites de viagem que passaram sussurando alto e voaram com todos os astros, - e ainda não é bastante poder pensar em tudo isto. É preciso ter recordações de muitas noites de amor, das quais nenhuma foi igual a outra, de gritos de mulheres no parto e de parturientes leves, brancas e adormecidas que se fecham. Mas também é preciso ter estado ao pé de moribundos, ter ficado sentado ao pé de mortos no quarto com a janela aberta e os ruídos que vinham por acessos. E também não é ainda bastante ter recordações. É preciso saber esquecê-las quando são muitas, e é preciso ter a grande paciência de esperar que elas regressem. Pois as recordações mesmas ainda não são o que é preciso. Só quando elas se fazem sangue em nós, olhar e gesto, quando já não têm nome e já não se distinguem de nós mesmos, só então é que pode acontecer que, numa hora muito rara, do meio delas se erga a primeira palavra de um verso e saia delas”.

(Rilke, “Os Cadernos de Malte Laurids Brigge”, tradução de Paulo Quintela, edição de “O Oiro do Dia”, Porto, 1983)

 

 

            “Há um ser que é totalmente inofensivo. Quando te vem à vista, mal o notas e esqueces-te logo dele. Mas quando, invisível, de qualquer modo te entra no ouvido, então desenvolve-se lá dentro, sai por assim dizer da casca, e já se viram casos em que penetrou até ao cérebro e medrou neste órgão de maneira devastadora, semelhante aos pneumococos do cão que penetram pelo nariz.

            “Este ser é o vizinho”.

(Rilke, “Os Cadernos de Malte Laurids Brigge”, tradução de Paulo Quintela, edição de “O Oiro do Dia”, Porto, 1983)

 

 

            “Quando se fala dos solitários, pressupõe-se sempre uma enorme porção de coisas. Julga-se que as pessoas sabem do que se trata. Não, não sabem. Nunca viram um solitário, apenas o odiaram sem o conhecer. Foram seus vizinhos, os vizinhos que o gastaram, e foram as vozes do quarto ao lado que o tentaram. Excitaram as coisas contra ele, que fizessem barulho e abafassem a sua voz. As crianças aliaram-se contra ele, por ele ser delicado e criança; e à medida que crescia, crescia contra os crescidos. Farejavam-no no seu esconderijo como um bicho que se pode caçar, e a sua longa juventude não teve época de defeso. E quando ele se não deixava esfalfar e se escapava, então, gritavam eles sobre o que dele provinha, e achavam-no feio e tornavam-no suspeito. E quando ele os não queria ouvir, eles tornavam-se mais explícitos e comiam-lhe a comida da boca e respiravam-lhe o seu ar e escarravam na sua pobreza para que ela se lhe fizesse odiosa”.

(Rilke, “Os Cadernos de Malte Laurids Brigge”, tradução de Paulo Quintela, edição de “O Oiro do Dia”, Porto, 1983)

 

 

            “O destino gosta de inventar desenhos e figuras. A dificuldade dele reside no complicado. A vida mesma, porém, é difícil pela simplicidade. Tem apenas algumas coisas de um tamanho que nos não é adequado. O santo, rejeitando o destino, escolhe estas coisas, em face de Deus. Mas que a mulher, conforme à sua natureza, tenha de fazer a mesma escolha em relação ao homem, é o que evoca a fatalidade de todas as relações de amor: resoluta e sem destino como uma eterna, ergue-se ela ao lado dele, dele que se transforma. Sempre a amante ultrapassa o amado, porque a vida é maior do que o destino. O dom de si mesma quer ser desmedido: é esta a sua ventura. A dor inominada do seu amor, porém, foi sempre esta: que se exija dela que limite este dom de si mesma”.

(Rilke, “Os Cadernos de Malte Laurids Brigge”, tradução de Paulo Quintela, edição de “O Oiro do Dia”, Porto, 1983)

 

 

 

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Página editada em 28/02/06